O tema costuma gerar debate acalorado, o que indica que deva existir alguma relação entre neurociência e psicanálise. Entretanto, parece que estamos falando da mesma coisa em línguas diferentes, e sem dicionário. Pior: pode ser que este dicionário não possa ser criado, por causa do que os especialistas em teoria do conhecimento chamam de fosso epistêmico, o que se manifesta na grande distância a separar ainda as duas áreas.
Isto ocorre porque as duas disciplinas adotam perspectivas diferentes. Por um lado, a neurociência utiliza o método das ciências naturais, baseado em observação sistemática, experimentação e formulação de hipóteses empiricamente verificáveis. Assim, gera explicações objetivas de natureza pública. Já a psicanálise, baseia-se na vivência subjetiva, procurando compreender o significado dos conteúdos mentais.
Seria possível transpor esse fosso epistêmico? Acredito que vale a pena tentar. O grande desafio intelectual de nossa época é o de vencer a fragmentação da cultura, integrando conhecimentos de diferentes disciplinas no que se costuma chamar de interdisciplinaridade.
Este dualismo de aspecto teve origem na filosofia do pensador holandês Baruch Espinosa (1632-1677). Simplificando: o universo é constituído de uma única substância, que vista de fora se apresenta como matéria e por dentro como mente. Neste sentido, uma noção interessante é a da complementaridade, segundo a qual o conhecimento objetivo e o subjetivo seriam duas perspectivas sobre a mesma realidade – vista “de fora”, no primeiro caso; “por dentro”, no segundo.
Vias convergentes
No caso em questão podemos constatar que a psicanálise gerou conceitos sobre a vida psíquica e o comportamento que produziram grande impacto social e cultural. Alguns deles podem ser – e, na verdade, estão sendo – examinados pela neurociência.
Tomando como exemplo a área agora compreendida como transtornos de ansiedade, que ocupou boa parte da atenção de Sigmund Freud, constatamos que seu arguto senso de observação clínica levou-o a distinguir a ansiedade crônica, atualmente denominada transtorno de ansiedade generalizada, dos ataques de ansiedade, condição atualmente denominada transtorno de pânico.
Tal distinção foi validada farmacologicamente no início dos anos 1960 pelo psicofarmacologista norte-americano Donald Klein, dando origem à moderna classificação dos transtornos de ansiedade.
Já a explicação freudiana da distinção entre pânico e ansiedade em termos de canalização da libido (pulsão sexual) não tem tido ressonância na análise neurobiológica. Esta, ao invés, aponta para disfunções dos sistemas neurais que organizam estratégias de defesa contra diferentes tipos de ameaça, e não daqueles que regem o comportamento sexual.
Outro exemplo: a psicanálise revelou que experiências precoces em fases críticas do desenvolvimento podem ter consequências tardias na vida adulta. Em consonância, experimentos em animais de laboratório têm mostrado que o estresse na infância pode alterar a forma como os adultos enfrentarão desafios.
Recentemente, o grupo de pesquisa liderado pelo neurobiologista Luiz Carlos Schenberg, na Universidade Federal do Espírito Santo, mostrou que a separação diária da mãe por algumas horas durante a lactação causa, na idade adulta do rato, excitabilidade aumentada de uma estrutura cerebral que rege a defesa a perigos iminentes e que, provavelmente, desencadeia o ataque de pânico.
Este dado correlaciona-se com achados epidemiológicos mostrando que experiências de separação social, sobretudo a materna, aumentam a vulnerabilidade a ataques de pânico em pacientes.
No campo da cognição, experimentos com neuroimagem funcional em voluntários sadios, realizados na Escócia pelo psicólogo Michael C. Anderson, da Universidade de St. Andrews, mostram que as estruturas cerebrais ativadas quando a pessoa se esforça para afastar da consciência lembranças de experiências desagradáveis diferem das que são ativadas pelo mascaramento involuntário do mesmo tipo de memória.
Esta distinção corresponde, aproximadamente, à diferença entre supressão (processo consciente) e repressão (processo inconsciente), que são mecanismos de defesa do ego identificados pela psicanálise.
Este tipo de pesquisa mostra que a interdisciplinaridade não só é possível, como permite uma visão mais abrangente e aprofundada dos processos psicológicos.
Quanto à psicanálise, ainda é cedo para fazer um balanço final, porém podemos dizer que muitas de suas concepções são compatíveis com os conhecimentos que a neurociência vem obtendo, enquanto outras ainda não encontram correlação, ou não foram exploradas.
Não sei dizer se o conhecimento interdisciplinar poderá influir na prática analítica. Porém, para outros tipos de psicoterapia, como a cognitivo-comportamental, há fundada esperança de que o conhecimento das redes neurais envolvidas nos diferentes transtornos psiquiátricos e o entendimento das mudanças induzidas pela psicoterapia no funcionamento cerebral poderão orientar a prática clínica no futuro.
FONTE: Ciência Hoje
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